segunda-feira, 7 de março de 2016

Intervenção - Património Cultural, Conhecimento e Cidadania


Passamos pela Terra


Lídia Jorge *

Este é um encontro comemorativo,  mas sobretudo um fórum de especialistas na defesa do Património, e nesse sentido sou uma pessoa marginal  a este debate. Já talvez não o seja tanto,  quando penso que  pertenço ao grupo daqueles  que  aqui  estão presentes  apenas  porque   consideram  que não é impunemente  que passamos pela Terra.

Passamos pela Terra é o título que dou as estas breves palavras, no pressuposto de que aquilo que nos aproxima neste encontro é a ideia de que ao longo da nossa vida, quer queiramos quer não,  inscrevemos na sua superfície  o sulco das nossas vidas. O que cada um de nós pergunta, nas horas de balanço,  é como estava a Terra quando aqui chegámos, como estará ela quando daqui partirmos, e de que lado nos encontrámos, quando ela  desviou  para pior, ou, quando, pelo contrário, avançou no sentido  do progresso e da sua melhoria.  Por muito pouco que tenhamos feito,  beneficiando  do  seu usufruto,   inevitavelmente,  melhorámo-la ou diminuímo-la.  Nenhum de nós passa pela   Terra como uma borboleta  que pousa aqui e ali,  que nasce vive  e morre, mas deixa  a Natureza  na mesma.  Nós herdamos mudanças e fazemos mudanças,   somos sujeitos activos da História.   A  consciência  do  contributo  pessoal ,  e da nossa função enquanto agentes  de mudança,  nos dias de hoje, é tão mais importante quando sabemos  que estamos inscritos numa zona do Globo onde as transformações são aceleradas, a  alteração dos modelos  de vida  tem sido  rápida, a instabilidade existe, e a filosofia sobre o aproveitamento da terra, do mar e dos patrimónios  recebidos como legado,  tem sofrido evoluções tão rápidas que por vezes   se altera  em  escassos  períodos de tempo.
Talvez por isso mesmo, por essa aceleração de ritmo,   o  encontro de comemoração  dos  dez anos  da Convenção-Quadro  do Conselho da Europa sobre o Património na Sociedade Contemporânea,  acontecido  na mesma cidade e local onde foi assinada,   assuma especial significado.  Um instrumento legislativo que  une a vertente da herança  à  vertente da inovação,   que atribui  ao respeito pela  conservação do legado  um papel central  na  evolução harmónica das sociedades, e que  promove como conceito o princípio de que o respeito pela diversidade  da herança cultural é um motor de consideração  pela diferença  e  pela coexistência consentida,  e logo um  promotor  de paz.   Aliás, a  importância  teórica  destes princípios  fica bem  em relevo,  quando se avalia  em concreto o que tem acontecido a este respeito,  no seio  da própria Europa,  o  espaço  alvo a que  este texto  se
dirige. 

Por alguma razão, no livro que Guilherme d’Oliveira   Martins publicou  há seis anos, dando  conta dos princípios promovidos por esta Conveção- Quadro,  se refere a destruição da ponte de  Mostar, a antiga ponte que unia as margens do rio Neretva, dinamitada  pelos croatas da Bósnia  em  Novembro de 1993, com a simbologia  fratricida que se conhece.  Oliveira  Martins não o diz assim, mas todos sabemos que lá onde se perpetram  crimes graves contra o património  existe  alguém capaz  de cometer crimes  maiores  contra  a humanidade.   Fora do quadro geográfico da Europa, quem destrói as imagens dos Budas de Bamiyan, na  Rota da  Seda,  esculturas  com mais de  1500 anos, como aconteceu em  Março de 2001, também destrói populações inteiras, massacra e faz explodir não só esculturas,  mas grupos humanos, pelo mundo fora, indiscriminadamente. Quem destrói  o templo de Palmira,  e dinamita um  Arco de Triunfo romano, com mais de 2000  anos de antiguidade,  como aconteceu  em  Agosto passado,  é o mesmo Estado  que decapita soldados e jornalistas diante dos olhos do  mundo inteiro.  E acontece assim, porque o Património não  se confunde com  a Humanidade, mas é dela o seu retrato.

 Por isso se torna não importante, numa escala menor, ou mesmo residual que seja, demonstrar como o  respeito  por aquilo que foi útil e belo para os que já passaram pela Terra e nos deixaram o seu testemunho como herança,    merecer a consideração   do presente, e  convidar  à admiração mútua  futura,   pela beleza  expressa na diferença  dos  séculos, das etnias,  das nacionalidades,  a admiração  que concilia  povos,  territórios, falas, línguas,  literaturas, música e músicas.  Conceitos que não se vivem  em  abstracto,  nem  surgem  só em petições de princípio,  antes se concretizam   nas escolhas que fazemos,  miúdas escolhas do dia a dia, decisões curtas,  por vezes, mas decisivas nos lugares onde vivemos.  Decisões, junto das nossas portas.  E neste caso,   junto  das nossas  portas,  está  a região que aqui nos reúne,  o Algarve.

Para quem aqui vive, aqui nasceu, ou pura e  simplesmente para quem  estima esta região,  é difícil encontrar palavras  para  proceder  em poucas  linhas  a uma  invocação  competente. O facto do  afecto  sempre se sobrepõe à clareza.   Ultrapassemos, nesta circunstância, a expressão do afecto. 

Numa divisa assumida pela propaganda turística do Estado Novo, dizia-se,  então,  que outrora, os deuses antigos, cansados das  guerras e das  árduas batalhas do amor, voavam para estas paragens para descansar  e aqui fazerem a sua sesta. A Democracia não negou de todo esta mítica vocação de relaxe, mas sem dúvida que lhe emprestou actividades mais dinâmicas,  porque  não se dedicou a emprestar este território a deuses  imaginários, e sim, a gente bem humana  e bem palpável.  No entanto, como se sabe,   na  representação  imaginosa da aurea medirocritas  clássica,   é que não  existe defeito.  Na realidade, sim, o defeito sempre existe.  E para as populações concretas, efectivas,  e  as nómadas, turísticas, migrantes, visitantes dos nossos tempos,  ao longo dos anos,  não tem sido  fácil  criar harmonia.

Fácil, aliás, seria enumerar os erros, as zonas de caos, as zonas de sobreposição,  as zonas de desprezo,  as zonas de pretensão,  as zonas de amadorismo, as zonas de corrupção.  Mas esse é um caminho fácil.  Em oposição,  também não seria  difícil  enumerar as zonas de conforto, de preservação, de  desenvolvimento,  de beleza e de construção integrada,  zonas de recuperação,  aqueles lotes de paisagem que permitem a criação de imagens publicitárias  que  dão do Algarve a imagem de uma das regiões mais belas da  Europa.  O que se nos pede, porém, neste tipo de  encontros,  é que façamos  alguma coisa  mais  difícil  – Que se assuma  o estado patrimonial  que  existe como uma criatura  que está como está,  e a quem teremos,  sobretudo , de acrescentar   construções,  adiantando   propostas  que,  um dia, no balanço do futuro,  exibirão  por sua vez  a marca da nossa época, e do nosso grupo,  com seu  devido  acerto e seu  erro próprio.
Tanto mais  que,  em vários aspectos,  desde há um certo tempo,  que estamos a viver,  forçosamente, um momento  de viragem  de conceitos,  e importante  mudança de perspectivas. Inscritos numa zona de instabilidade entre  o Mediterrâneo e o  Atlântico,  com a História a fazer-se veloz, diariamente,  sob os nossos olhos,   não há quem não reconheça  que este é um momento particular , um momento  que nos obriga a reflectir  e a aprofundar  aspectos cautelares no que diz respeito à nossa identidade  naquilo que ela  têm de mais essencial.

Aliás, como observadora, por certo nem sempre lúcida,  ainda que   empenhada,  registo  com satisfação   que   essa viragem  ocorra em  áreas  tão decisivas  quanto  são, por exemplo,  as que dizem respeito  à  concepção  da  paisagem natural e à  paisagem construída, e a ambas, quando  integradas.  Hoje,  pode-se dizer que a devastação criada pela fúria imobiliária  -  devastação  voluntária,  entenda-se,  que só teve semelhança, no passado  mais recente, com a fúria  do regresso ao primitivo, na era liberal  e romântica do século XIX,   quando se  derrubou a camartelo, desnudou e enviou para os aterros o melhor dos nossos monumentos -    essa fúria imobiliária,  dizia, se não parou, pelo menos está contida, para bem do equilíbrio social, e harmonia da paisagem urbana.  Uma fúria imobiliária,  como não poderia deixar de ser,  agora criticamente avaliada,  e redimensionada no terreno.  Implosão passou a ser uma palavra digna.  O mesmo se pode dizer em relação à  paisagem natural. A progressiva consciência  de que é preciso respeitar a natureza  dos vários territórios , bem como os  movimentos ecológicos locais, promovidos  pelas associações de cidadãos,  e pelo trabalho da Universidade,  tende a repor  desvios cometidos e por certo pugnará  até ao extremo,  pelo maior bem da região, os fundamentos da sua identidade  -  a salubridade do mar, do ar,  das espécies, a fertilidade da terra nos locais onde não pode ser tocada, nem arruinada, nem construída.  Talvez não seja,  pois, errado  falar, de que se encontra em marcha um  movimento de correção.  Neste campo  patrimonial,  a  correcção será, porventura,  a nossa  próxima forma de expansão.

Correcção nos recursos dos equipamentos culturais, também.  O Algarve  do ponto de vista da sua dinâmica cultural, dividida por municípios  que entre si se rivalizam,   constitui, cada vez mais,  um arquipélago  de cidades artificialmente separadas,  de que a união e a coordenação em torno de projectos  comuns  constitui práticas esporádicas e excecionais.  Mas a constatação, cada vez mais frequente,  de  que  a região  vai ter de  funcionar como uma metrópole cultural,  articulada,  com partilha e coordenação de recursos,   necessidade  reconhecida pelos  vários intérpretes regionais,  por certo que  tenderá a encontrar uma liderança que a  promova , e uma administração que a execute.   Decidir sobre a terra com minúscula, é sempre decidir sobre  a Terra com maiúscula.

Por outro lado,  tomada a consciência de que a valorização e  conservação do  Património   construído tem de ir a par do Património imaterial da  região  - o que pelo menos em parte tem sido  realizado ao logo dos últimos anos -  se não estou em erro, carece  da tomada de alguns  cuidados   sem os quais  os cidadãos  não se reverão no seu património, como um bem  que lhes diga respeito.  É  que a  herança   oral  de  aparato folclórico, coreográfico  ou  religioso,   a par da sua  preservação, carece de instrumentos de  integração  que os incorpore na modernidade,  sem os quais, a cultura pop  homogénea   tenderá a  apagar os vestígios distintivos  provenientes do passado, aqueles  que  determinam a identidade  única e  original .  Essa é uma luta importante, porque representa  a tentativa de promover  a  diferenciação, de  manter  uma inscrição no tempo que  distingue,  e uma aposta no ex-ótico   que  enriquece .  Embora  esse  salto qualitativo,  que se pretende     que seja dado, num mundo em que  a sofisticação  dos instrumentos   tomou de assalto a sofisticação dos conteúdos,   seja difícil de dar.  Se vale a pena?  Em  minha opinião, sim. 
O reforço na identidade cultural de uma sociedade é a melhor garantia  de que  quem, vindo  de fora, a  procura, não apenas se desloca no espaço, mas viaja.  A  noção de  oferta turística enquanto assimilação antecipada  em relação àquele que nos visita,  é  uma aposta  demasiado   escassa.  Encontrar o mesmo à chegada  que se  possuía à partida  não recompensa.  Seria o mesmo que os  habitantes de  Veneza, ou Roma, em vez de nos oferecerem melancia  vermelha  servida em  vidro de Morano, nos oferecessem  a nós, portugueses,  pasteis de  Belém,  junto  à  Fonte de Trevi.
Aliás, parece ser  um princípio  tão basilar que uma vez exposto  se confunde com o  óbvio,  o  afirmar  que a valorização  do autêntico,  o histórico  e o criativo,  se deve dirigir, em primeiro lugar,  para os próprios  sujeitos da comunidade   de origem.  Os próprios  como primeiro destinatário,  os habitantes  nativos,  os  da própria  região,  até pela simples  razão de que os próprios  fazem parte do património que se move.  E embora em  acto contínuo,   os visitantes  de uma região,  de  uma cidade estrangeira,  ou o que quer que seja, se transformam  em destinatários privilegiados, porque acolhidos no mundo que é dos outros e do qual passa a partilhar do seu  melhor. 
Por isso,  Sagres,  o mítico promontório de Sagres,  local  simbólico de partida  para a primeira globalização,  não pode deixar de se transformar  num local  de visita  indispensável,   em primeiro lugar, para os  cidadãos portugueses.  Um local  incontornável de visita para os europeus,  e para os cidadãos do mundo inteiro que  passem pela Europa da Sul.  Um esforço que deve ser feito – aliás, que está a ser feito -  um objectivo  em torno do qual nos temos de unir.

Mas também me parece  não menos importante  a consciencialização de que  a região  se nutre de uma  narrativa histórica,  uma poética e  uma narrativa ficcional,  faltando-lhe uma narrativa cinematográfica,  com raízes nesta zona,  ou  tendo esta zona como sujeito transfigurado.  A  indiferença   por essa dimensão  é  imensa,  e  no que diz respeito  à  narrativa cinematográfica,  o retraimento   se não é total, é quase.  A  chamada de atenção para essa dimensão  estruturante da identidade  através  da efabulação  e da transfiguração poética por meios  audiovisuais,  numa zona que em tempos foi  ocupada  por  povos  sobre os quais  consta que tinham o seu corpo de leis escrito em verso,  pareceria  fazer todo o sentido.  Mas talvez  esse sentido só seja encontrado um dia, mais tarde, quando a nossa  ambição  for outra. 
Ou talvez,   pelo contrário, estas palavras, daqui a alguns anos, pareçam desconjuntadas e  ridículas.   Ninguém nos garante que a aposta na colonização cultural, na homogeneização, na facilitação, na infantilização  da cultura,  nos serviços  de entretenimento comprados à distância, por catálogo,  não seja a aposta  global vencedora. Ninguém nos garante que a aposta  de que  a  Terra, sim, será  plana,  parafraseando  o título voluntarista do    cronista do The New York Times ,  autor  no domínio  da economia liberal, de The world is flat ,   não venha a ser  o  que nos espera, no plano do Património e da Cultura.  O que a Convenção – Quadro   do Conselho da Europa  procura  precisamente  é  inverter esse caminho, com a promessa do reforço  da criação de valores de diferenciação positiva.  Os seus mentores, alguns  deles  aqui presentes,  asseguram esse ideal,  um ideal  que por certo se transformará  em  realizações  justas  aqui , sobre esta terra.


Uma nota  pessoal  para dizer que,  sobre esta terra,  tenho escrito dezenas de páginas,   e  a partir dela   tenho fantasiado  centenas, talvez  mais de um milhar. Mas a imagem síntese do que me prende a este território, talvez só o tenha encontrado há dois anos, quando me pediram que escrevesse  um texto  de introdução a um livro sobre  Vilamoura.  Debruçando-me durante algum tempo sobre esse que foi entre nós, nos anos sessenta, o projecto  mais coerente da   criação   de uma  cidade  moderna,  criação a partir  de um espaço aberto,   edificado sobre a reminiscência de uma  antiquíssima  ruína, dei-me conta  do  achado de uma  lamparina de azeite, uma pequena lucerna,  aquando das primeiras escavações no local.   Essa lucerna de barro   acabaria por ser,  durante muito tempo,   o  emblema  de Vilamoura. Passei a gostar dessa lucerna.  A ideia que eu tenho, agora,  é de que ela é o símbolo de toda uma região  se,  no seu caco de terra cozida,  formos capazes de acender a chama  que ainda lhe falta.  Não tenho  dúvidas de que nós, aqui reunidos, queremos acendê-la.  A minha esperança não tem limites. Obrigada.


*Comunicação de Lídia Jorge na Conferência Internacional por ocasião do 10º aniversário da Convenção  de Faro

27 de Outubro de 2015

Teatro das Figuras

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